"No ano passado...
Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse
atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo
mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma
está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se
poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano
passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de
anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do
Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:
"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela
janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades,
um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma
simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num
andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um
corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua
ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova."
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